Tempo de acordar: o tratamento do conflito dirigido aos interesses e necessidades dos envolvidos

Por Aline Leão
Advogada, Mediadora Judicial Certificada pelo Nupemec TJRS/CNJ, Bacharel em Comunicação Social e membro do NEM desde 2013

A estudiosa portuguesa Mariana França Gouveia caracteriza os meios de resolução alternativa de litígios a partir de três diferentes critérios: (1) voluntário ou obrigatório, (2) adjudicatório (heterocompositivo) ou consensual (autocompositivo), (3) centrado nos interesses ou nos direitos. A perspectiva dos direitos é a conhecida e tradicional forma utilizada pelo Judiciário e, entre os meios alternativos, pela arbitragem: baseia-se na discussão dos aspectos legais do direito material e processual, bem como nos aspectos probatórios de cada parte. A outra ótica de tratamento do conflito é verdadeiramente nova para os juristas e, por isso, de difícil percepção: a perspectiva dos interesses e necessidades das partes, individualmente considerados e, por vezes, desconsiderando o que o direito determina sobre o seu caso. Ou seja, o objetivo se torna a pacificação do conflito em sua amplitude, em detrimento da solução juridicamente correta para o caso.
Na visão de José Luis Bolzan de Morais, o modelo jurisdicional clássico centrado no acesso ao Judiciário e na imposição de soluções normativas como forma de dirimir os conflitos que aparecem na sociedade (ou, como disse Gouveia, o modelo centrado nos direitos), se assenta na seguinte fórmula: oposição de interesses entre indivíduos iguais em direitos, para os quais é indispensável a sobreposição do Estado como ente autônomo, externo e imparcial; que vai prover uma decisão cogente, impositiva e fundamentada em textos normativos de conhecimento público, previamente elaborados e estruturados. Frente a crise do modelo clássico de jurisdição, Bolzan analisa que os meios alternativos (especificamente os consensuais) surgem como uma outra justiça que funciona a partir de um modelo denominado por ele de juriscontrução:

Há, portanto, ao invés da delegação do poder de resposta, uma apropriação do mesmo pelos envolvidos, peculiar pela proximidade, oralidade, ausência/diminuição de custos, rapidez, negociação, e pela atribuição de uma função simbólica referencial ao ente estatal, pois aponta para a desjudicialização do conflito, que permanece como uma instância de apelo (…) sempre que não for possível a solução consensual do conflito (BOLZAN, 1999, p 114)

O processo de juriscontrução serve, portanto, aos interesses das pessoas e não as suas posições nem a regras previamente estabelecidas. Mais do que isso: propõe abandonarmos a ideia de que o sistema só é eficiente quando para cada conflito há uma intervenção jurisdicional. A partir deste raciocínio, construímos a ideia de sistema eficiente com base na oferta de instituições e procedimentos que procurem prevenir e resolver controvérsias centrados nos interesses e necessidades das partes. 
A resolução construtiva é apresentada por Érica Babosa e Silva como uma possibilidade de trabalhar o litígio a partir de uma perspectiva mais ampla, considerando não apenas a realidade normativa, mas a realidade social, econômica e política em que está inserido. Em contraponto, a estudiosa compreende que a decisão adjudicatória acaba por se apresentar como elemento potencializador de alguns conflitos, eis que se limita a ditar autoritariamente a regra para o caso concreto. A consequência disso é que a parte perdedora não aceita esta regra ditada e se insurge com todos os recursos e impugnações possíveis. Ressalta Silva que, com tantas forças e interesses ativos na sociedade, é impossível alcançar um sistema ideal e suficiente de regulações para alcançarmos a completa pacificação social. Todavia, a ordem jurídica tem por finalidade promover algo, mais próximo quanto possível, de uma harmonia em sociedade, calibrando as dissonâncias das relações sociais mediante regulação. Desta forma, é de fundamental importância a forma como os conflitos são vistos pelas pessoas e tratados pelo Estado, de maneira a favorecer sociedade no desenvolvimento de suas relações.
A nova legislação nos trás a possibilidade de uma importante reforma institucional, procedimental e cultural, que valorize e priorize as formas colaborativas de tratamento de conflitos, de modo a auxiliar na ampliação do acesso à justiça, da utilidade e satisfação dos usuários do sistema de justiça, do senso de justiça, da efetividade de direitos, do estreitamentos de laços entre os membros da comunidade, bem como destes membros com as Instituições. É tempo de jurisconstrução e de enxergar a capacidade transformadora dos conflitos, sob a luz dos interesses e necessidades de todos (individualmente considerados e enquanto membros de um todo). É tempo de acordar.

Referências:

GOUVEIA, Mariana França. Curso de resolução alternativa de litigios. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2011.

MORAIS, José Luis Bolzan de. Mediação e Arbitragem: alternativas à jurisdição! Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

SILVA, Érica Barbosa e. Conciliação judicial. 1. ed. Brasília - DF: Gazeta Jurídica, 2013.