NEM Memória: Com a palavra, Dr. José Luís Bolzan de Morais.

Procurador do Estado do Estado do Rio Grande do Sul, Professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos; membro do conselho consultivo do Instituto de Hermenêutica Jurídica;  Consultor ad hoc da CAPES, CNPQ, FAPERGS, FAPESC e Università degli studi di Roma Tre; Professor convidado da pós-graduação na Universita del Salento, Universita de Firenze, Universidad de Sevilla e Universidade de Coimbra; Coordenador do Grupo de Estudos Estado e Constituição; Membro do Grupo de Especialistas para a Reforma da legislação de migrações da Secretaria Nacional de Justiça.

Natural de Jaguarão/RS, José Luís Bolzan de Morais também é pai da estudante de Direito Giulia, motociclista, e, confirmando suas raízes italianas, um amante dos vinhos e da boa gastronomia.

Nesta entrevista,o fundador do NEM fala sobre a criação do Núcleo, sua compreensão sobre a mediação, e os desafios a serem enfrentados pela política judiciária atual.




Por Aline Leão

Quando, onde e como o senhor ouviu falar pela primeira vez em mediação? 
A mediação chegou até mim quando estava estudando na França, em 1992, no meu doutoramento. Lá conheci o Prof. JP Bonafé-Schimit, de Lyon, tendo participado, com ele, na Universidade de Lyon de diversas atividades promovidas no âmbito do seu grupo de estudos à época. Lá, também, fiz as primeiras leituras sobre o tema, em particular as obras do mesmo professor. E deste período saiu o meu livro "A Ideia de Direito Social" que dialoga com a bibliografia de Georges Gurvitch, a partir da qual se pode tirar inferências importantes para o desenvolvimento dos estudos sobe a mediação. Depois, retornando ao Brasil, desenvolvi a compreensão da mediação com o diálogo constante do meu professor, mestre e amigo Luis Alberto Warat, quando se constitui minhas convicções mais fortes sobre o significado, conteúdo e potencialidades da mediação.

De que maneira a mediação contribuiu (contribui) para construção da sua compreensão sobre o Direito?
A mediação confronta muitas das fórmulas do direito moderno, pondo em discussão os limites de seus pressupostos e dos mecanismos construídos a partir destes, bem como apresenta algumas possibilidades de reconhecimento, compreensão e tratamento de conflitos, permitindo um novo olhar sobre a vida em sociedade e o próprio ser humano. Desde estes supostos pode-se avançar para pensar o Direito desde um paradigma que não esteja colonizado pela filosofia da consciência, pela tentativa de domesticarão e controle social e nem perceba e lide com o conflito como uma patologia social. Por óbvio que isto não signifique o reconhecimento do papel ou dos papéis desempenhados pela Direito na modernidade, imbricado com um grande projeto civilizatório, o qual, todavia, como se tem demonstrado - tanto por filósofos da política, historiadores e juristas -, não conseguiu produzir os resultados para os quais dizia ser o meio mais adequado. Para tanto basta lembrar, sem entrar em detalhes aqui, o sucesso no plano teórico do constitucionalismo e dos direitos humanos ao longo do século XX, em resposta e como tentativa de contenção da barbárie, e o seu fracasso no mundo da vida. Afinal, como sentenciou Hobsbawn, o "curto" século XX foi o mais sangrento da história da humanidade.

Como surgiu a ideia e em que contexto formou-se o Núcleo de Estudos de Mediação (NEM)?
No final da década de 1990, com meu retorno ao Rio Grande do Sul e o contato com alguns interessados sobre o tema por aqui, sugerimos a criação do núcleo à direção da Escola da AJURIS, que acolheu a ideia e permitiu que nela se instalasse um ambiente para estudar o assunto. Creio que a aproximação de atores da academia a atores do mundo prático, além daqueles que compõem ambos os espectros, fez o sucesso desta empreitada, bem como permitiu e permite o confronto de perspectivas diferenciadas sobre a mediação.

Como foi a receptividade e quais os desafios enfrentados por quem falava em mediação na época?
A mediação, além de pouco conhecida, produzia, quando de sua "reaparição", em especial para o campo do Direito, reações contrárias - mesmo por quem sequer soubesse do que se tratava - em especial por parte dos profissionais desta área, inclusive por razões corporativas. De outro lado, diversas pessoas e de variadas formações foram se aproximando do tema e assumindo a discussão em torno do mesmo, o que viabilizou, inclusive, a sobrevivência do grupo até quando a mediação passou a ser uma alternativa à e para a crise dos sistemas de justiça. E tal coloca um outro desafio: dar-se conta que a mediação é muito mais do que isso e, por isso mesmo, não pode/deve ser reduzida a uma tecnologia de apoio às deficiências e insuficiências do sistema de justiça como jurisdição estatal. Da mesma forma é preciso reconhecer que os déficits da jurisdição não serão corrigidos enquanto não forem reconhecidos como constitutivos do modelo e como resultado de sua própria prática. Afinal, processo e procedimento são respostas culturais ao mesmo tempo que produtores de cultura. Dito de outra forma, um modelo adversarial produz conflito ao invés de tratá-lo.

O senhor poderia nos contar um momento marcante da sua trajetória no NEM?
Creio que a realização de convênio com a Secretaria de Reforma do Judiciário e diversas entidades da sociedade civil permitiu que o grupo desenvolvesse um trabalho junto a uma comunidade local, levando a cultura da mediação e aportando conhecimentos de autonomia à coletividade em questão. Creio que os resultados produzidos demonstram o significado da mediação como cultura e instrumento de transformação social. Da mesma forma, as dificuldades apontam, para além das idiosincrasias das políticas públicas no Brasil, para as dificuldades de uma nova cultura produzir resultados transformadores.

Dr. Bolzan (D) em palestra promovida pela OAB/RS sobre Justiça Restaurativa e Mediação Penal.
Foto: Guilherme Castelli - OAB/RS - 2011

Recentemente, em evento promovido pela ONU (Global Mediation Rio), o Ministro Ricardo Lewandowski disse que a mediação deixou de ser uma política do Judiciário para se tornar uma política de Estado, com participação conjunta também do Executivo e do Legislativo. No atual cenário político e social, como o senhor avalia a retomada dos métodos autocompositivos e a tentativa de formulação desta nova cultura/modelo? Quais são os principais desafios a serem enfrentados?
Não creio que a mediação tenha sido algo que se constituiu a partir e desde o Judiciário para se transformar em uma política de Estado, penso que o Ministro Ricardo Lewandowski se equivoca ou enxerga a mediação apenas como um gestor de um sistema de justiça confrontado com seus dramas internos, bem como condicionado pelos modelos eficientistas de administração judicial. A mediação vem "de fora" do Judiciário e é por ele apropriada como uma possibilidade de resposta aos seus próprios limites. Sequer a mediação pode ser percebida apenas como tal - um remédio paliativo -, sob pena de fragilizarmos suas qualidades transformadoras, fazendo-a apenas uma técnica simplificada a serviço do sistema de justiça e, de regra, "subalterna" ao modelo adversarial e adjudicatório, característica da Jurisdição. Atualmente vejo a mediação contraposta em duas frentes. De um lado como uma tecnologia a serviço das limitações dos sistemas de justiça tradicionais. Como uma alternativa que permitiria "desafogar” - e está é uma palavra recorrente - a jurisdição. Algo como o que foi dito com a criação, instalação e difusão do modelo dos Juizados Especiais (os quais têm em sua principiologia  o consenso como meio para obter respostas aos conflitos de sua competência) e os resultados estão aí. De outro, como uma "outra cultura", a partir da qual se pode pôr em pauta muitas das soluções institucionais modernas, cujos fundamentos filosóficos são distintos. E esta é uma diferença fundamental. Talvez até se possa tentar promover uma interação entre ambas. Isto é muito difícil e demanda não só uma formação jurídica diferenciada, mas a exata compreensão do significado e do papel do consenso conectado ao sistema de justiça estatal. E este caminho ainda está em construção. Há que se ter presente as diferenças e potencialidades dos diversos métodos.  Negociar e conciliar não são a mesma coisa que mediar - que não significa "estar no meio". Suponho que a negociação e a conciliação possam contribuir em muito com a jurisdição. Temo pela mediação quando introduzida no espaço da jurisdição. É isto não significa desconhecer os resultados que muitas vezes são apresentados por projetos que visam tal "comunicação". A experiência italiana aponta isso. Portanto, a retomado de modelos autocompositivas é válida, até mesmo essencial. Entretanto, não se pode confundi-los e sequer colonizá-los. Por outro lado cultura e processo - tomado aqui, simplificadamente, como fórmula para tratar conflitos - são inter-relacionados, porém é por isso, a incorporação destas fórmulas autocompositivas em um ambiente de cultura adversarial é muito difícil e exige ajustes finos constantes e nem sempre produzem os resultados que mentes burocráticas prevêm ou que pessoal de boa vontade idealizam. Tudo isso faz parte de uma disputam de um projeto de sociedade. E, portanto, só o tempo dirá o resultado. E não estou falando aqui deste "tempo acelerado", mas do tempo histórico, de longa duração.

Como o senhor compreende a função da mediação extrajudicial e da mediação comunitária neste contexto?
Deixando de lado uma delimitação prévia, qual seja a de que a mediação extrajudicial é um conceito que traz uma contradição ou um paradoxo, se entendermos como espaço adequado para a mediação aquele que está aquém e além das ambientes da jurisdição, pelo que vimos dizendo, estas poderiam ser pensadas como as opções para aquilo que me parece a melhor contribuição que a mediação pode trazer: criar uma nova cultura social acerca do conflito, de sua imanência e de suas potencialidades. Há que se ter em mente que o conflito é constitutivo da sociedade. Que conflito - como "crise" - abre possibilidades, não fecha. Permite a criação do novo, não apenas a reprodução das velhas expostas. Que o conflito aproxima, não separa ou exclui. Ou seja, a mediação no seu ambiente natural, por assim dizer, serviria como fonte propulsora para a construção não apenas de respostas pontuais para conflitos pensados "ad hoc", mas o enraizamento de uma nova compreensão dos laços convivíeis, no reconhecimento do outro como amigo, parceiro de caminhada, não como estranho, inimigo. Contribuiria para recuperar a hostis grega no sentido da "hospitalidade" e não da hostilidade, como o foi pelas instituições modernas. Dito de outra forma, a mediação como cultura da outridade - tomo emprestado o termo de Luis Alberto Warat - iria além de um meio de tratar um conflito particular, alcançando o status de um "projeto de civilidade". Agora, pensada restritivamente, apenas como uma técnica para gerir conflitos, mesmo enfraquecida de sua potência máxima, por óbvio que a mediação em seu ambiente natural, repito, contribui para a construção de respostas melhores circunstancialmente e, globalmente, para ir forjando uma cultura de paz e reconhecimento fundamental para, no tempo de longa duração, quem sabe, forjar está "nova civilidade".

Como o senhor avalia as proposições legislativas de regulamentação da mediação judicial e extrajudicial (Novo CPC e Marco Legal da Mediação)?
Sempre tendo presente aquilo que já foi dito antes relativamente ao caráter e ao lugar privilegiado da mediação, estas propostas são uma tentativa de dar um formato a algo que é intrinsecamente fluido. E, como tal, apesar das intenções sabidamente as melhores, a construção de um sistema de múltiplas portas, como indicado nas proposições do novo CPC, dialogam com a fala do Ministro Lewandowski e aparecem como tentativas de resposta à propalada crise da jurisdição. Entretanto, na maioria das vezes funcionam como condicionantes da mediação e não como meios de a fazer mais forte. E os motivos são diversos. Desde sua submissão ao modelo adjudicatório até seu controle - ou tentativa - por parte de alguns atores. Não creio que a mediação, como cultura, possa ser "domesticada" ou burocratizada como uma técnica para dar respostas - rapidas(?) e eficazes - para conflitos percebidos como litígios. É isto está bastante presente tanto nas propostas inseridas no Novo CPC, quanto na tentativa de se construir uma legislação específica e abrangente - nomeada pela linguagem atual como "marco regulatório". Não pode a mediação ser obrigatória ou procedimentalizada. A mediação merece ser tratada em sua dimensão mais ampla. Porém, a tendência que se vislumbra é a adoção de modelos de mediação usados como "novas" fórmulas para responder paliativamente à, repito, crise da jurisdição. E, neste sentido, é preciso o maior cuidado. Dois aspectos me parecem fundamentais: não submetê-la a um controle autoritário e burocrático, bem como não subjugá-la em sua dimensão transformadora. É isto é muito difícil quando pensada como um modelo conectado ao eficientismo característico das reformas processuais que temos assistido. Tenho claro que muito do que aqui dito vai de encontro à política judiciária atual, inclusive pode ser confrontado com estatísticas - sobretudo se avaliadas apenas quantitativamente - esgrimidas em muitos relatórios. Mas precisa ser dito. Até mesmo para contribuir com aqueles que têm a responsabilidade da gestão e da decisão nestes ambientes. E, sobretudo, para ser fiel a tudo aquilo que o NEM e os seus membros, majoritariamente, já realizaram nestes anos todos de estudos que visaram não apenas aprender e dominar uma tecnologia, mas entender os fundamentos de uma cultura.