O autoconhecimento do mediador: ilusões e possibilidades



Leonardo Della Pasqua 

Psicólogo, psicanalista. Mediador judicial e privado, instrutor e supervisor de mediadores judiciais pelo TJRS. Mediador certificado pelo ICFML – Instituto de Certificação e Formação de Mediadores Lusófonos. Membro do Núcleo de Estudos em Mediação da Escola Superior da Magistratura (AJURIS/RS). Membro do EMPATHOS – Instituto de Parentalidade e Mediação. Presidente da Sociedade de Psicologia do RS (2011-2013).

Em algum momento de sua prática profissional, todo o mediador acaba se deparando com situações onde sua atitude e condução foram determinantes para o procedimento. Ou ele foi protagonista demais ou precisava ser mais ativo, ou se identificou com a experiência dos mediandos ou foi frio e distante, ou intuiu possibilidades ou foi flexível com o procedimento. Aos poucos vai ficando claro o quanto o autoconhecimento afeta a qualidade e a eficácia do trabalho desenvolvido e questionamentos vão surgindo: Quais as possibilidades de autoconhecimento do mediador de conflitos? Como identificar os limites desta busca? De que modo é possível reconhecer e trabalhar com nossos “pontos cegos”?

Conhecendo a si mesmo

A maior parte das pessoas não faz ideia de quem sejam. Têm uma ideia acima ou abaixo do que realmente são. O profissional que trabalha com conflitos é responsável por criar um ambiente de lucidez e entendimento entre as pessoas e precisa conhecer os seus próprios limites, sob pena de comprometer a própria relação com a qual irá trabalhar. Quando o mediador ignora os atributos próprios do seres humanos (como as emoções, resistências, as tendências internas e as preferências) corre o risco de contrariar os próprios princípios da mediação, como a independência, a imparcialidade, a autonomia da vontade e a neutralidade, distanciando-se das condições necessárias para ser um facilitador do diálogo.

Para auxiliar nesta construção, abaixo indico algumas condições necessárias para ser mediador:

  1. Formação contínua: desenvolvimento pessoal, aprofundamento teórico, técnico e supervisão;
  2. Pessoa real do mediador: humano que comete erros;
  3. Visão das diferentes partes dos conflitos (internos e externos);
  4. Novos vértices de observação - visão binocular;
  5. Respeito: enxergar a pessoa sem rótulos e preconceitos;
  6. Terceiridade: terceiro que consegue pensar dentro e fora do conflito;
  7. Empatia: entrar dentro da experiência subjetiva do outro;
  8. Capacidade negativa: conter as angústias decorrentes do seu não saber;
  9. Intuição: olhar com um terceiro olho, com uma visão para dentro do sujeito;
  10. Ser verdadeiro.

Ilusões sobre o autoconhecimento

A Frase “eu que sei de mim” demonstra um ódio ao inconsciente, pois o autoconhecimento não pode ser atingido sem a interação com o outro. Sei de mim através do outro, pela interação com outro. Nossa identidade é constituída a partir dos traços do outro. Existe uma construção Ilusória de unidade. O eu é uma miragem, pois há uma divisão entre o que eu penso e o que o outro me mostra que eu penso. Neste sentido, o autoconhecimento é heteroconhecimento.

Um exemplo sobre esta questão é a famosa frase: "Tanto imitei Elvis Presley que me tornei John Lennon". Se observarmos com atenção esta fala, salta aos olhos o quanto o líder do Beatles se serve da identificação para construir o próprio eu. Enquanto ele apenas imita Elvis está alienado. Ao separar-se do cantor, mantendo uma identificação com ele, sua identidade se constitui.

A incomunicação é a regra e é comum usarmos a etiqueta da conversa nas nossas relações cotidianas. A lógica deste modelo funciona assim: “eu não te ouço e você não me ouve”. Há um pacto de silêncio onde tudo que não encaixa na intenção é recordado e jogado fora. Uma vez que eu identifico o que você quer dizer, qualquer coisa que não se encaixe neste discurso eu faço de conta que não ouvi. Entramos e saímos das conversas sem nenhuma mudança. O impasse se dá quando esta forma de diálogo invade a mediação. O desafio é estabelecermos uma ética da fala - impossível acontecer no cotidiano.

Autoconhecimento e processo de mudança

Uma das maneiras de se autoconhecer e caminhar na direção da mudança é tomar conhecimento dos desejos inconscientes. Investigar os próprios sonhos, com interesse e persistência, favorece esta caminhada existencial, pois o mundo onírico é precioso em revelar verdades difíceis de aceitar. É preciso exercitar o fortalecimento da razão, sem ignorar os processos mentais inconscientes. Atravessar a frustração, sem fugir dela, pode servir de bússola neste caminho. Para isto, deve-se vencer a preguiça e ser humilde nesta busca.

O autojulgamento deve gradativamente abrir espaço ao autoconhecimento. As técnicas usadas para ouvir e dialogar com os outros pode ser usada para estabelecer um diálogo interno, além de exercitar ver a si mesmo a partir do camarote, buscando um distanciamento emocional e cognitivo. A autoempatia é fundamental. Uma pergunta interna pode auxiliar na descoberta de seus verdadeiros interesses e necessidades: por que eu quero isto? Ou ainda: a serviço do quê eu desejo isto? Passar da culpa à responsabilidade favorece o autoconhecimento, pois a responsabilização é diferente das autoacusações – estas últimas tendem a buscar autopunições, não soluções para os problemas. Da hostilidade deve-se caminhar gradualmente em direção à cordialidade. Manter-se no presente e aceitar a si mesmo e aos outros como seres humanos não perfeitos é fundamental.

A maneira com fomos ensinados a nos avaliar frequentemente traz mais ódio por nós mesmos do que aprendizado. Sempre que nos percebermos reagindo com recriminação a algo que fizemos podemos nos questionar: qual necessidade não foi atendida e está sendo expressa por meio deste julgamento moral? Este processo provoca um luto necessário que nos ajuda-nos a entrar em conexão plena com as necessidades insatisfeitas e com os sentimentos que são gerados quando fomos menos que perfeitos. É uma experiência de arrependimento que nos ajuda a aprender com o que fizemos. É preciso atravessar este luto até chegar ao perdão. Recomenda-se a autocompaixão – a capacidade de ter empatia por ambas as partes de nós mesmos: a parte que se arrepende de uma ação passada e a parte que executou aquela ação.

Considerações finais

As ideias apresentadas apontam para a construção de um diálogo interno do mediador, onde o mesmo se responsabiliza pelas suas ações, evitando acusações ou julgamentos morais. Investimentos em desenvolvimento pessoal ou uma psicoterapia favorecem o autoconhecimento e são bem-vindos. Podem ajudar a minimizar inúmeras situações constrangedoras e de atrapalhação por parte do mediador.

O desejo do outro nos afasta de nosso próprio desejo. Quanto mais fizermos as coisas porque queremos, mais propósito encontraremos em nossas ações e na nossa vida.

Autoconhecer-se exige tempo e energia psíquica. É um trabalho que não termina, pois está em constante desenvolvimento. O mediador que não se conhece, cedo ou tarde será desafiado e poderá contaminar a mediação e sua relação com os mediandos. Quem decide atuar nesta profissão deve estar preparado para desacomodar-se. Quanto mais conhecedor de si, de suas limitações e de seus pontos cegos, mais possível será a realização do trabalho em mediação com eficiência.


Fontes:
GOLDENBERG, Ricardo. A utopia do autoconhecimento. Disponível em: https://youtu.be/hDhtnXt3TeM
KRISHNAMURTI, J. Como aprender sobre si mesmo? Disponível em: https://youtu.be/mSmX-c82cYQ

ROSENBERG, Marshall. Comunicação não-violenta: técnicas para aprimorar relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora, 2006

URY, William. Como chegar ao sim com você mesmo. Rio de Janeiro: Sextante, 2015.

ZIMERMAN, David E. Fundamentos psicanalíticos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.